Filosofia e saúde

A relação entre Filosofia e Saúde está no interior da própria filosofia. Em toda a história da filosofia, esta foi vista como medicina da alma. A medicina cuidaria do corpo, enquanto a filosofia cuidaria da alma; algo como hoje se concebe usualmente a relação entre medicina e psicanálise. Na história da filosofia, tal concepção da filosofia como uma terapêutica, no entanto, torna-se mais forte com as filosofias que não dissociam corpo e alma. Por exemplo, e explicitamente, com Espinosa e Nietzsche. São filosofias que enfatizam a importância do ambiente e do afeto para o pensamento; ou mais precisamente, nos termos de Espinosa, são filosofias que entendem que nossas afecções, isto é, as impressões que os outros corpos e idéias nos fazem, geram em nós afetos, sentimentos, que influem em nosso modo de ver o mundo, estar no mundo, nos relacionarmos, pensarmos, conhecermos, valorarmos as coisas.

Uma filosofia terapêutica favoreceria portanto um conhecimento intuitivo, ou uma abertura para nossos afetos, muitas vezes inconscientes, o que nos permite entendermos melhor como nossos sentimentos funcionam. Para Espinosa, a terapêutica consiste basicamente em estarmos aptos a perceber como se dá nosso funcionamento afetivo; selecionarmos nossos encontros (com pessoas, coisas, eventos, alimentos etc.) favorecendo aqueles que nos trazem afetos ativos; no caso dos maus encontros, pois em algum grau são sempre inevitáveis, posto que não podemos nem faz sentido desejar controlar o mundo em torno, trata-se de transformar os afetos passivos sentidos em afetos ativos. Algo como tornar-se, pouco a pouco, capaz de, como sugere Nietzsche em sua teoria da grande saúde, fazer valer sua máxima o que não me mata me fortalece, usando como material de crescimento, enriquecimento e fortalecimento as vicissitudes encontradas. Selecionar os encontros diz respeito a contribuir ativamente para nossa forma de vida, buscando construir um ambiente físico e psíquico que nos favoreça o crescimento e a realização interna.

Estes filósofos desconstroem ilusões e acrescentam a isso uma filosofia afirmativa dos afetos. O que há em comum e está sempre em questão é a idéia de que nossos pensamentos influenciam nosso humor, nosso corpo, nossa vida, e, portanto, nossa saúde, seja individualmente, seja no âmbito do saber. Nossa saúde e a saúde como campo de saber só têm a ganhar abrindo-se à prática reflexiva, investigativa e questionadora da filosofia. Esta, por sua vez, ganha em concretude e em vigor, ao entender que a filosofia concerne a uma realidade presente e viva, e não a abstrações distantes da vida sensível. Trata-se de uma relação que vai no sentido contrário da idéia ainda familiar de que a filosofia não serve para nada. Serve, sim, inclusive para contribuir para nos tornarmos mais saudáveis.

Texto extraído de: Martins André. Filosofia e saúde: métodos genealógico e filosófico-conceitual. Cad. Saúde Pública  [serial on the Internet]. 2004  Aug [cited  2013  Feb  16] ;  20(4): 950-958. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2004000400009&lng=en.  http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2004000400009.